a outra me fez roer os dedos

Benette Bacellar

No caso deste livro há instantes de tranqulidade, outros de ironia e até mordacidade, tudo sempre com calma, até de contemplação, quando trata de sua condição de ser humano, ou quando trata do horror e da delícia de ser mulher.

– Claudinei Vieira | prefácio

anjo voraz

Marco Aurélio Souza

No poema que dá título à obra, Marco Aurélio enfrenta novamente o demônio incessante da memória, este inimigo que nunca descansa, em movimento semelhante ao que ocorre em Travessia. Anjo Voraz, no entanto, não é marcado pela ternura, mas sim investiga aquilo que foi e não é mais, tudo aquilo que poderia ter sido, como bem escreveu Pessoa através de Álvaro de Campos: “O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa/ Pondo grelado nas paredes…/ O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),/ O que eu sou hoje é terem vendido a casa,/ É terem morrido todos”.

– Daniel Osiecki | prefácio

breves delírios

Victor Toscano

A dos Cem Anos

Essa guerra já é especial somente pelo tempo que durou. Que seja breve a paz, diz o filósofo. E eu concordo.
Sou Roddrick, o mais atrapalhado dos Plantageneta. Minha missão é assassinar Joana D’Arc antes que ela chegue a Órleans. Entro disfarçado de mulher no castelo de Iolanda de Aragão. Há muita dança e comida. Joana D’Arc, vestida de homem, me tira para dançar.
Ela fala mal dos ingleses e tem uma risada encantadora. Ponho cicuta em sua cerveja. De repente, um soldado bêbado a acusa de cross-dressing, e ela atira a bebida na cara dele. Em seguida, sou eu o acusado de me travestir. Descobrem que sou um inglês infiltrado e me conduzem à degola; mas antes, pedem que eu ponha uma roupa de homem.

– trecho  do  conto

zona de conforto

Lindevania Martins

Aqueles pais, que em casa cultivavam a virulência, na presença daqueles que julgavam ricos ou poderosos, eram curiosamente subservientes, passivos, complacentes, capachos mesmo. Eu observava, admirada, como aplaudiam, quando vinham daqueles, todos os comportamentos que em casa execravam, como repetiam em uníssono eco, quando proferidas por aqueles, todas as palavras que em casa repudiavam.

Ganhei uma bofetada por chamar a atenção daqueles pais para ações tão flagrantemente contraditórias. Logo percebi que batiam em meu rosto porque podiam fazê-lo sem medo de revide e que era por isto que feriam os filhos, que os sufocavam, que os torturavam, quando não podiam fazê-lo aos que verdadeiramente os machucavam, pois, naquele mundinho perverso, nós éramos as vítimas ideais, as que não protestavam, as que não se esquivavam, as que não se rebelavam, as que não matavam.

– trecho  do  conto

moedas soltas no bolso

Vitor Simon

Vamos até a praça para fumar um cigarro. A praça fica bem em frente à farmácia e tem arbustos podados em forma de animais. Sentamos em um dos bancos e Valter fica durante um longo tempo em silêncio. Por fim, fita-me e pergunta o que eu estou planejando. Respondo que pretendo viajar, ele apenas palita os dentes e recomeça a contar suas histórias. Antes das despedidas, entrego-lhe uma cópia da chave do meu apartamento e lhe peço que tome conta enquanto eu estiver fora. Sei que Valter mora com a mãe e que isso o desagrada. Informo-lhe a data de minha partida e ele pergunta para onde vou.
– Para a floresta – respondo.
Ele ri até ficar vermelho e diz que eu sou mesmo um cara muito engraçado.

– trecho  do  conto

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